Translate

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A Moralidade e a Atitude Mental no karate-do no
Pensamento de Gichin Funakoshi
Morality and Mental Attitude on karate-do
Based on the Ideas of Gichin Funakoshi
Cristiano Roque Antunes Barreira
Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
O caratê é uma prática de luta com origens incertas quanto ao tempo, mas com acentuado desenvolvimento na ilha de Okinawa do arquipélago nipônico. Doravante praticado às escondidas, tornou-se público no século XX através de Gichin Funakoshi. Funakoshi denominou-o karate-do, “o caminho das mãos vazias”, dando um caráter doutrinário à arte que deveria servir ao desenvolvimento da personalidade e não somente como mera forma de lutar. No Brasil, apesar do grande número de praticantes, a compreensão daquilo que era enfatizado por Funakoshi é dificultada pelas profundas lacunas culturais em relação aos japoneses. Procura-se fazer um resgate teórico das idéias psicológicas e morais próprias do caratê sob a luz dos paradigmas culturais de maior influência no pensamento de Funakoshi. Depreende-se claramente a influência do confucionismo e bushido, por sua vez influenciado pelo Zen-Budismo, que permitem compreender o pensamento de Funakoshi acerca da moralidade e atitude mental.
Palavras-chave: Caratê; Karate-do; Idéias Psicológicas e Morais.
Abstract
Karate is a fight practice whose beginnings are unknown, but which developed highly in Okinawa, an island of the Nipponic archipelago. In early times, karate used to be a secret practice. It became a public practive in the twentieth-century, by the practice of Gichin Funakoshi, who denominated it karate-do, or “the way of empty hands”. In doing so, he gave a doctrinal character to the art of karate, so that it could serve to develop a sense of personality and not just a way of fighting. Although there is a great number of practicioners of karate-do in Brazil, the comprehension about Funakoshi´s thought is still difficult due to the enormous gap that exists between the Brazilian and Japanese cultures. In this study, we present a theoretical survey of the psychological and moral
ideas of karate through the perspective of the cultural paradigms contained in Funakoshi's thought. The influence of Confucian philosophy and bushido, which are, both, influenced by Zen-Buddhism, was made evident. This allows us to understand Funakoshi's thought regarding morality and mental attitude.
Keywords: Karate; Karate-do; Psychological and Moral Ideas.
Introdução
O caratê, hoje, é praticado por aproximadamente 20 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil há aproximadamente 1 milhão de praticantes segundo a Confederação Brasileira de Karate.
O seu surgimento como forma de luta é milenar e suas origens incertas. Todavia, o seu desenvolvimento mais acentuado ocorreu nos últimos séculos e o caracterizou como uma luta própria da ilha de Okinawa no arquipélago japonês. Sua prática nessa ilha era secreta até o século XIX e tornou-se pública a partir da Era Meiji através de Gichin Funakoshi (1868 – 1957). Este mestre okinawano foi responsável pela introdução do caratê no resto do Japão e iniciou o processo de sua divulgação e expansão pelo mundo.
As artes marciais japonesas eram acompanhadas de um conjunto de valores considerados virtuosos e o ensino de caratê, que era permeado por moralidade e religiosidade bastante intensas até então, tenderia a ater-se mais à técnica no decorrer desse processo de expansão. Gichin Funakoshi considerava essa arte uma forma de aperfeiçoamento da personalidade do praticante. Em sua obra escrita sempre enfatiza a conduta que o carateca deve ter. Foi o primeiro a chamar a arte de karate-do, o “caminho das mão vazias”, ao invés de somente “mãos vazias”, dando um caráter doutrinário à arte. Por seu trabalho é considerado o fundador do caratê moderno.
Funakoshi vive em um momento de grandes transformações na estrutura social e política do Japão. Com a abertura ao Ocidente, fim do feudalismo e fim da classe samurai na Era Meiji (1868), várias mudanças ocorriam na vida da população e a necessidade de adaptação às novidades tornava-se mais urgente. Em sua autobiografia escreveu sobre a época em que foi professor escolar: O Japão vivia um momento de grande efervescência; mudanças importantes ocorriam em todas as partes, afetando cada faceta da vida. Como professor sentia a obrigação de ajudar a geração mais jovem, que um dia forjaria o destino de nossa nação, a preencher as enormes lacunas que se escancaravam entre o Japão velho e o novo (Funakoshi, 1994, p. 18).
Funakoshi aparentou maleabilidade em lidar com a adaptação aos novos tempos. Sem se desfazer dos valores advindos de sua descendência de samurais, com o rígido código de honra dessa classe, o bushidô, possibilitou a inclusão de sua arte nos tempos modernos. Seu pensamento acerca do caratê como método de aperfeiçoamento da personalidade, é advindo não apenas da prática desta arte marcial por si só. O professor Yasutsune Azato iniciou-o na arte marcial e no confucionismo. Outras relevantes influências que permeiam o pensamento de Funakoshi são o xintoísmo, religião nativa do Japão que tem como ,arca o culto e respeito aos ancestrais, o zen-budismo e o já citado bushidô (caminho do guerreiro). São esses os alicerces de suas concepções morais e espirituais e, portanto, do conjunto de sua visão do mundo que engloba também idéias psicológicas.

Objetivos
O objetivo desse trabalho é realizar um resgate teórico das idéias psicológicas (1) e morais próprias do caratê, contextualizando-a à luz dos paradigmas culturais de maior influência no pensamento de Gichin Funakoshi. Tal resgate teórico possibilita a compreensão em nosso contexto ocidental contemporâneo, das origens do código moral do caratê que pode, assim, ser avaliado adequadamente por seus praticantes. Com efeito, Funakoshi, segundo sua autobiografia, tinha consciência de que o caratê iria evoluir modificando-se tecnicamente e enfatizou que, acima de tudo, fosse mantida justamente a sua essência que é relacionada ao aperfeiçoamento de características de personalidade, moralidade e também espiritualidade. As evoluções e modificações técnicas se confirmaram, assim como a importância que os praticantes ainda hoje dão a valores que vão além da prática esportiva, graças à divulgação de seu trabalho. Todavia, com a internacionalização, esses valores, que fazem a essência do caratê como entendido por Funakoshi, diluiram-se e se descaracterizaram na medida em que foram recortados do contexto cultural em que se inseriam.

Material e Método
A metodologia dessa pesquisa segue a abordagem da historiografia da psicologia e das idéias psicológicas: a contextualização do pensamento a ser investigado não busca a “tradução” de conceitos mas a compreensão global do pensamento de acordo com suas origens.
A leitura da obra de Funakoshi buscou evidências de seu pensamento moral sobretudo focalizando sua visão acerca da atitude do praticante da arte marcial. Realizada esta etapa procurou-se na literatura histórica, os referenciais teóricos que fundamentam seu pensamento. A obra escrita de Gichin Funakoshi e os referenciais teóricos, documentos esses utilizados como fonte primária e secundária nessa pesquisa, serão relacionadas nas referências bibliográficas.
Resultados
O caratê começa e termina com cortesia
“Na verdade, a essência da arte foi resumida nestas palavras: O caratê começa e termina com cortesia” (Funakoshi, 1994, p. 44). Ao associar a essência do caratê à cortesia, Funakoshi faz pressupor de que um dos fins da arte seja a harmonia. Há uma relação direta entre harmonia/arte e moral/cortesia, referendada no confucionismo, que liga as obrigações morais à estabilidade e à paz.
Dentro desse enfoque compreende-se melhor a importância dada por Funakoshi à moralidade. A seguir, diversos exemplos dessa moralidade, que tem por finalidade última a manutenção da paz: você deve ser sempre profundamente solícito com cortesia, sendo sempre respeitoso e obediente aos mais velhos. Não existe arte marcial que não ressalte a importância da cortesia e das boas maneiras (Funakoshi, 1998, p. 50).
Karate-do não é somente a aquisição de certas habilidades defensivas, mas também o domínio da arte de ser um membro da sociedade bom e honesto. Os jovens, em particular, deveriam mostrar um interesse maior por suas famílias, e isto, sem dúvida, é uma questão importante, não apenas para o possível praticante de caratê, mas também para todo membro da raça humana. A mente do verdadeiro carateca deve estar imbuída de tais desvelos, antes de voltar a atenção para o seu corpo e para o aperfeiçoamento de sua técnica. Amor ao caratê, amor a si mesmo, amor à família e aos amigos: todos levam ao amor à própria pátria. O verdadeiro sentido do caratê só pode ser alcançado através desse amor (Funakoshi, 1994, p.110).
A extensão dos conselhos morais de Funakoshi é ampla: enfatiza-se, por exemplo, a necessidade da atenção dos jovens para com suas famílias. A importância desse valor, proveniente seja do xintoísmo seja do confucionismo, tem o mesmo objetivo final. O xintoísmo dá uma importância religiosa para esse valor moral; já o confucionismo explica sua importância considerando que “a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo ensinamento moral” (Doeblin, 1940, p. 145). Para o confucionismo, os corpos são aquilo que nós “herdamos de nossos pais e não devemos atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do governante e se completa pela formação do caráter” (Doeblin, 1940, pp. 145 e 146). A formação do caráter é considerada como sendo um dos objetivos do caratê por Funakoshi, portanto a piedade filial torna-se a maneira pela qual se origina o desenvolvimento do caráter.
Um aspecto importante do desenvolvimento do caráter é alcançar o equilíbrio, o equilíbrio entre material e espiritual. A formação e o exercício de ambos os aspectos é considerado como essencial para que o homem possa de fato ser realizador. É também, ainda o equilíbrio, algo que deve ser sempre buscado para garantir uma preparação constante que impede imprevistos e, caso aconteçam, se esteja capacitado para lidar com eles. Influi aqui um aspecto relevado por Funakoshi e que se fundamenta na tradição histórica japonesa: “Lembrar os tempos de aflição nos tempos de paz e treinar constantemente o corpo e a mente são as duas atitudes que formam o espírito orientador e o caráter do povo japonês” (Funakoshi, 1994, p. 89). Essa constante preparação, que norteia a base do pensamento nas artes marciais japonesas, serve para que se evite ser "pego desprevenido por terríveis tempestades e enchentes" (Funakoshi, 1994, pp. 88 e 89) (2), o que parece uma espécie de metáfora daquilo que não se deseja ao psiquismo e surge, no confucionismo, como decorrência espiritual do despreparo do homem, relacionada a uma espécie de justiça natural, baseada em causa e efeito. No Zen-Budismo, o equilíbrio é dado como o caminho do meio e o desequilíbrio tem suas conseqüências: O caminho do meio está onde não há nem meio nem dois lados. Quando estais escravizados ao mundo objetivo, tendes um dos lados, quando estais com a mente perturbada, tendes o outro. Quando nenhum desses lados existe, não há parte do meio, e portanto aí estará o caminho do meio (Suzuki, 1992, p. 71).
Funakoshi atenta para o grande risco da predisposição mental ao possível uso do caratê em lutas, pois tal atitude não se coaduna com os objetivos de desenvolvimento a que o caratê se propõe. ...o caratê não é, nem jamais foi, meramente, uma forma bruta de autodefesa. Pelo contrário, quem quer que realmente domine a arte do caratê tomará cuidado para não aventurar-se em situações ou lugares perigosos, onde possa ser forçado a usar a arte (Funakoshi, 1994, p. 121).
Tal predisposição é tida como um risco à finalidade da arte, pois facilita a ocorrência de uma atitude ofensiva. Sua ênfase na importância da solicitude, cortesia, respeito, obediência aos mais velhos, prudência e humildade, enfim, no que parece ser sua concepção de boas maneiras, tem como meta a manutenção da paz e da harmonia, proposta no confucionismo e almejada pelas demais religiões com as quais teve contato. Nas palavras do filósofo do confucionismo Tsang, a reafirmação do princípio de causa e efeito justifica o cuidado a ser tomado com os próprios atos: “Cuidado, cuidado, o que vem de ti voltará novamente a ti” (Doeblin, 1940, p. 127). Tendo em mente o risco que atitudes ofensivas e orgulhosas podem denotar, Funakoshi ressalta o perigo último, o risco de vida que as contendas físicas podem acarretar quando o caratê entra em cena. Nas palavras de Mêncio, pensador do confucionismo, o auto exame para com suas possíveis faltas é a primeira atitude a ser tomada: Há um homem que me trata de modo perverso e irrazoável. Neste caso, o homem superior dirá a si mesmo: “Deve haver-me faltado benevolência. Deve haver-me faltado correção. Como pode ter acontecido isso?” Examina-se a si mesmo e é acentuadamente benévolo. Esquadrinha o seu íntimo, e é especialmente respeitoso à correção. A perversidade e a conduta irrazoável do outro, no entanto, continuam a existir. O homem superior voltará a dizer-se: “Não terei feito tudo o que podia?” (Doeblin, 1940, pp. 85 e 86)
Na concepção de desenvolvimento do guerreiro adepto do Zen, a visão de Funakoshi também parece referendada: “Desembainha a espada apenas nos momentos inevitáveis, porque ela se converteu na sua alma, evitando, porém, lutar contra um adversário indigno, que se vangloria dos seus músculos, não deixando de receber, por causa disso, um sorriso que o acusa de covardia” (Herrigel, 1995, p. 87). O ditado referido por Funakoshi: “Tenha cuidado”, escrevi num dos meus primeiros livros, “com as palavras que fala, pois, se você for arrogante, fará muitos inimigos. Nunca se esqueça do antigo ditado que diz que um vento forte pode destruir uma árvore robusta, mas o salgueiro verga-se, e o vento passa sobre ele. As grandes virtudes do caratê são a prudência e a humildade” (Funakoshi, 1994, p.102) pode ser melhor compreendido se recorrermos ao contexto histórico em que está inserido. As transformações pelas quais o Japão passava, provocaram o fim da rígida hierarquia social que predominou durante séculos. O orgulho de classe, principalmente nas estirpes samurais, foi tão forte em determinados momentos que uma palavra considerada ofensiva dita a um samurai, podia ser o suficiente para que esse executasse quem a proferisse. Os descendentes de samurais tinham que se adaptar às
transformações e, não raro – foi o que aconteceu com a família de Funakoshi – passavam por uma situação econômica muito difícil, às vezes aliada a um desprezo social relacionado à classe que oprimiu a população por séculos, abusando do poder que agora não tinha mais. Portanto, sem a defesa da posição de classe, mas ainda com os valores samurais predominando nas famílias de descendentes, era grande o risco de um orgulho inquebrantável, sendo necessário pois, uma reconsideração acerca do que é ofensivo.
Tem-se como maneira correta de agir primeiramente o cuidado com o próprio modo de ser, e em seguida, a relativização da importância do erro do outro: “você deve ignorar o que não é bom e adotar o bom” (Funakoshi, 1998, p. 50). Temos inúmeros exemplos na obra de Funakoshi, que esclarecem a diferença entre “não bom” e “bom”. No confucionismo há o seguinte trecho que pode nos dar uma idéia resumida, mesmo que parcial, daquilo que foi referido: “Encontrar prazer no estudo consciencioso do cerimonial e da música, encontrar prazer em falar da bondade dos outros, encontrar prazer em ter muitos amigos dignos, são coisas vantajosas. Encontrar prazer em prazeres extravagantes, encontrar prazer na ociosidade e na disponibilidade, encontrar prazer nos prazeres dos banquetes, são coisas prejudiciais” (Doeblin, 1940, pp. 135 e 136).
A atenção despendida nos escritos de Funakoshi aos bons modos, com ênfase na prudência e humildade, parece ser coerente com o que julgava mais urgente destacar, naquele momento aos praticantes de caratê, conforme podemos observar quando cita alunos que pensam de maneira diferente. A recorrência a esses valores não deve, porém, ser confundida com passividade e conformismo. Há observações claras acerca da obrigação da luta pelo que é justo. O Mestre Mêncio, na perspectiva do confucionismo, alerta que se deve recompensar "o mal com justiça e a bondade com bondade” (Doeblin, 1940, p. 136), através da luz da razão. Considera ainda que há algo que mais abomina que a morte, algo que ama mais do que a própria vida, e este algo é a retidão. Portanto, a arte do karate-do é tida como meta e método que depende de seu praticante e de seus atos: Sempre disse para meus alunos: “A arte não faz o homem, o homem é que faz a arte” (Funakoshi citado por Sasaki, 1995, p. 90).

Espírito de luta
A atitude ou postura mental, comumente identificada como “espírito de luta” (3) no meio carateísta brasileiro, é um caracterizador das artes marciais japonesas tradicionais. A ênfase é dada nesse aspecto desde o princípio do ensino nessas artes marciais, tendo-se o uso adequado da técnica como função dessa atitude mental e de muito treinamento. Como grande parte do treinamento técnico das artes marciais é feito a partir de exercícios individuais, sem um companheiro de treino a frente, evidencia-se o uso da imaginação para que o treinamento não se torne simples repetição de gestos físicos, sem a seriedade de sentido que se deve dar a eles. O samurai Miyamoto Musashi escreve sobre o pensamento voltado a um único golpe como determinante da luta: “Você poderá ter a certeza da vitória com o espírito de “Um Golpe”. É difícil atingir esse nível, porém, quando a estratégia não é bem aprendida. Se você treinar suficientemente neste Caminho, a estratégia sairá do seu coração e você terá condições de vencer à vontade. Mas é preciso treinar com esforço” (Musashi, 1996, p. 72). Em Funakoshi e em Musashi, há um sentido comum, “seu espírito se expressará com toda a plenitude” e “a estratégia sairá do seu coração”. Para tanto, a crença na necessidade da decisão e do acerto do golpe são sempre enfatizadas: “Quando se pensa que a vitória é certa, e quando se está mais alto, o golpe saí mais forte; é este o momento do ataque” (Musashi, 1996, p. 68). A determinação mental no momento do golpe é considerada como um meio, não só de melhorar a finalização do golpe, mas de, assim, dar vazão a um uso máximo de potenciais pessoais. Por isso, diferencia-se a aplicação da técnica, segundo esta modalidade, da aplicação da mesma em uma atitude sem determinação e sem o objetivo de finalização do combate: “Mesmo que você talhe com força, e mesmo que o inimigo morra instantaneamente, você ainda assim estará talhando. Quando se golpeia o espírito está resoluto” (Musashi, 1996, p. 67).
Funakoshi, apoiando-se num antigo dito chinês afirma que “o conhecimento da habilidade e das sutilezas técnicas de um oponente era metade da batalha” pois “O segredo da vitória está em conhecer a si mesmo e a seu inimigo” (Funakoshi, 1994, p.29) (4). Nesse sentido o conhecimento de si mesmo e do adversário, é tido como necessário, como um meio para alcançar a vitória e como meio de aperfeiçoamento pessoal, aperfeiçoamento esse que se dá na interação e no contato com o outro: Com o Karate-do, oferecendo sua ajuda aos outros e aceitando-a deles, o homem adquire a habilidade de elevar a arte ao estado de crença, em que possa aperfeiçoar corpo e alma e assim finalmente chega a reconhecer o significado verdadeiro do Karate-do (Funakoshi, 1994, p. 117).
O aprofundamento do conhecimento de si próprio e o reconhecimento do significado do Karate-do, tem no outro um importante auxílio, pois é nessa relação de alteridade que ocorre o desencadeamento de reações pessoais que não poderiam ocorrer em âmbito apenas individual, sem interação. No contato com o outro existe a possibilidade de se encarar concretamente o medo e suas conseqüências. A experiência dos antigos mestres chega a mesma conclusão, a necessidade da seguinte postura (5): “Tanto na luta quanto na vida cotidiana você deve mostrar determinação aliada à calma” (Musashi, 1996, p.56). Preparar-se sempre, como demonstrado anteriormente, é o caminho para esta postura.
A preparação é algo a ser reconhecido e levado em consideração inclusive já durante o próprio momento da luta, indicando a tática a se assumir. Jamais se considera a possibilidade de desistência, de fuga da luta (essas são palavras que não aparecem nos textos sobre caratê), considera-se sim, e com veemência, a necessidade de, porventura, haver recuo para preparação. Note-se o exemplo abaixo (grifo nosso):
Todos conhecemos a persistência da habu (ndr: uma espécie de cobra peçonhenta). Mas dessa vez não foi esse o perigo. A habu que encontramos parece estar familiarizada com as táticas do caratê e, quando deslizou para dentro do campo, ela não estava fugindo de nós. Estava se preparando para um ataque. A habu compreende muito bem o espírito do caratê (Funakoshi, 1994, p. 58).
Portanto enfatiza-se a perpétua “determinação e calma” (que advêm ao mesmo tempo que alimenta a preparação) que permitiriam identificar, ou mesmo produzir, o melhor momento – recorrentemente atribuído à postura mental adequada – para si e o pior momento para o adversário: “será vencedor quem, autopreparado, espera para surpreender o inimigo despreparado” (Tzu citado por Clavell, 1997, p. 28). Porém sugere-se que a “melhor” atitude é a que, com essas características acima dadas, atua esquecida de si própria. Essa atitude serviria a determinados objetivos e intenções. E de fato ela pode servir e bem. Mas esse não é o propósito no Zen-Budismo. A atitude sugere uma postura diante da realidade que, independe de fins utilitários, ela é a própria intenção, o próprio objetivo. Assim compreende-se que a ação, com tudo o que ela acarreta, importa mais em si própria do que um objetivo dado a ela. Na realidade, o Zen considera que esse próprio objetivo irá mais facilmente ser atingido (6). Em uma luta ou em um jogo, a intenção é a vitória e ela está presente alí, mas é deixada de lado frente à ação. A finalidade última desse princípio parece ser o desenvolvimento espiritual.
Vejamos ainda que o aprendizado técnico e a atitude seguem juntos em desenvolvimento paralelo, um associado ao outro: Você estudará métodos de negacear e penetrar nas defesas do seu oponente, e reconhecerá como são essenciais um sentimento vigoroso e intrépido e um forte espírito de luta. Por último, você chegará a uma compreensão profunda de que além do que pensamos, que é o máximo, sempre há algo melhor (Funakoshi, 1998, p. 55).
O aprendizado de técnica e de tática, são colocados mais uma vez como necessários e importantes, regularmente vinculados a uma atitude mental favorável: “é indispensável que você sinta necessidade e vontade de abater o inimigo” (Musashi, 1996, p. 58). Nota-se, novamente, o surgimento da idéia de constante preparação, de se evitar a acomodação e de que o treinamento do caratê proporciona, se praticado como proposto, o máximo em se tratando de atitude mental, esse máximo está descrito por Miyamoto Musashi: “O espírito de se derrotar um homem é o mesmo para se abater dez milhões de homens” (Musashi, 1996, p. 44). Além disso, considera de maneira semelhante a Funakoshi, que “o guerreiro tem que treinar dia e noite a fim de tomar decisões rápidas.
Na estratégia, é importante tratar o treinamento como parte da vida normal, sem qualquer mudança de espírito” (Musashi, 1996, p. 45). Tais posições são acompanhadas de maneira próxima também no pensamento chinês clássico: “apesar de termos ouvido falar de precipitações estúpidas na guerra, a inteligência nunca foi associada a decisões demoradas” (Tzu citado por Clavell, 1997, p. 22).
Todavia, Funakoshi ressalta que estar em constante preparação, estar alerta, não significa viver numa posição de conflito permanente, nem numa atitude ofensiva,
significa estar em condições de avaliar situações, avaliar a si próprio e ao outro, a fim de tomar a atitude adequada ao que é justo. Desse modo o verdadeiro praticante do budô é tal que: “Seu sorriso pode conquistar até o coração das crianças; sua ira pode fazer um tigre encolher-se de medo” (Funakoshi, 1998, p. 50).

Condutas indesejáveis
Em sua obra, Funakoshi recorrentemente faz referências a posturas indesejáveis aos praticantes de artes marciais. O karate-do é uma arte marcial nobre, e o leitor pode ter certeza de que aqueles que se orgulham de quebrar tábuas ou telhas, ou que se vangloriam de poder realizar façanhas exóticas, como cortar a carne ou quebrar as costelas, realmente não conhecem nada de caratê. Eles estão brincando nos galhos e entre as folhas de uma árvore frondosa, sem ter a mínima idéia do tronco (Funakoshi, 1998, p. 17).
O trecho acima, em que repreende aqueles praticantes que falam do caratê exagerando seus feitos, ressalta o sentido profundo que Funakoshi dá à sua arte, um sentido que não deve se perder na superficialidade e nas banalizações, até porque, como visto anteriormente, a finalidade utilitária pelas quais se valoriza o caratê nestes discursos, seria prejudicial ao conceito de desenvolvimento do Zen, em que isto é tido como “diabólico” (7), no sentido de tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento espiritual. O risco é perder-se de vista a “natureza” do caratê.
Para Funakoshi, a finalidade técnica ou a intenção de se fazer uso do caratê, não são suficientes para manter uma pessoa interessada pela prática e justifica-se a necessidade de se evitar o uso, principalmente por parte dos jovens: ...sempre há alguns que têm como desejo único aprender caratê para utilizá-lo numa luta. Esses quase inevitavelmente abandonam o curso antes mesmo da metade do ano, porque é quase impossível que qualquer jovem, com objetivo tão tolo, continue por muito tempo no caratê (Funakoshi, 1994, p. 112).
As atitudes indesejáveis apontadas por Funakoshi demonstram, em seu sentido oposto, atitudes esperadas para a prática adequada. O praticante deve agir segundo o costume japonês de ensino marcial, o costume samurai de superar as dificuldades físicas, a dor, a exaustão, a fim de aprimorar a força da vontade frente a dificuldades: “A princípio tudo parecerá difícil, mas a princípio tudo é difícil” (Musashi, 1996, p. 47). No texto secular de Musashi encontra-se a seguinte metáfora que, por fim, indica que essa prática não beneficiaria somente o treinamento em si: “...esteja preparado para remar o quanto for preciso sem as velas. Se você alcançar este espírito, ele terá aplicação em sua vida cotidiana” (Musashi, 1996, p. 80). Funakoshi classifica como ridículas as lamúrias que interfeririam esse processo e refere-se ao “castigo” como o mais adequado a esses casos. Isso se representaria, pelo Zen, em um tapa na face, por exemplo, "um fato direto, uma experiência pura, a verdadeira fundação do nosso pensamento e do nosso ser." (Suzuki, 1992, p. 73)
Há críticas enfáticas de Funakoshi à atitude arrogante, pois de acordo com sua noção de equilíbrio já exposta anteriormente (8), ambas, atitude e habilidade, devem ser valorizadas. Funakoshi retira a ênfase na finalidade agressiva ou violenta do caratê, pois esta não caracteriza o caratê como entendido por ele. Tais fins afastam o praticante das finalidades nobres do caratê, quais sejam as referentes ao desenvolvimento pessoal. Responsabiliza os que ensinam enfatizando a agressividade ou a violência, pelas preocupações das autoridades quanto ao seu possível uso violento. Ressalta a necessidade de maior ênfase a sua natureza “espiritual” do que à técnica. Preconiza que o caratê seja uma busca do auto-conhecimento, uma maneira de se deter consigo próprio, de se auto-avaliar interiormente e exteriormente, uma busca de autodesenvolvimento pessoal que terá reflexos no desenvolvimento social. Funakoshi descreve em sua autobiografia uma ocasião em que, aos trinta anos de idade, participa de um confronto de “guerra de braço” com desconhecidos. Segundo seu relato, após várias vitórias no jogo retira-se, mas no caminho é atacado pelo grupo, de sete ou oito pessoas. Esquivou-se dos golpes até o líder do grupo mandar que o ataque fosse interrompido. Assim posteriormente refletindo sobre a situação, pondera: Quando cheguei a Shuri, estava cheio de remorso. Por que havia entrado no confronto da guerra de braço? Teria sido por mera curiosidade? Mas a resposta verdadeira me veio a mente: era confiança excessiva em minha força. Numa palavra era orgulho. Era uma violação do espírito do Karate-do e me sentia envergonhado (Funakoshi, 1994, p. 65).
A ação induzida pelo orgulho e que, por algum motivo, provoque uma situação arriscada como a descrita é tida como não correspondente à moralidade da arte. O orgulho é uma das grandes barreiras a serem superadas e esta concepção parece ser advinda do Zen-Budismo que, neste sentido atribuí sim a necessidade de uma conduta moralmente correta e baseada na humildade, como descreve Suzuki: “Aqueles que não atingiram ainda a completa compreensão do Zen podem, irresponsavelmente, cometer todos os excessos e até crimes em nome do Zen. Por essa razão, os regulamentos dos mosteiros são muito rígidos e tendem a afastar o orgulho do coração, adotando integralmente a humildade” (Suzuki, 1992, p. 150). A rigidez dos treinamentos marciais japoneses, também parece ter como ideal, dentre outras finalidades, a suplantação do orgulho (9).

Conclusão
Vimos que na obra de Gichin Funakoshi existem relações entre as idéias morais e as idéias psicológicas. A estrutura geral dessas idéias, assim como a maneira pelas quais as principais influências culturais, das quais elas derivam, se conectam a essas idéias, foram apresentadas. Outras influências, que porventura nos tenham escapado, certamente não têm a mesma importância dentro do conjunto de idéias de conteúdo moral e psicológico.
No decorrer do trabalho, foi possível, após a seleção das idéias que se enquadravam como morais e psicológicas, localizar grande parte das influências que as originaram e fundamentaram. Verificou-se que o principal fundamento é, de fato, o confucionismo em primeiro lugar, seguido pelo bushidô, estando o xintoísmo relegado a pano de fundo pois sua influência não é evidente (a não ser no que se refere à piedade filial, onde assume papel decisivo no pensamento de Gichin Funakoshi).
A moralidade tem como finalidade a manutenção da harmonia e da paz. Segundo a visão de Funakoshi, o caratê deve servir a esse propósito. Como origem do pensamento e sentimento moral no homem, pode-se reconhecer dois tipos de experiências. Quando a pessoa adquire conhecimento acerca do outro, isto é, toma consciência da existência de um outro que pode sentir a mesma dor, tem-se o primeiro vislumbre da necessidade de consideração e posterior respeito pelo outro. Na prática do caratê mais moderno – em que o contato físico e as lutas tornaram-se mais constantes – esta experiência estaria ocorrendo a todo o momento, servindo para fortalecer o sentimento da necessidade da moralidade na vivência individual à coletiva. Já o desenvolvimento e o ensino da moral, tem seu fundamento na piedade filial. Nesta, irá se basear o respeito que se difunde aos demais e o serviço aos superiores hierárquicos, considerando-se ainda que aí está a origem da formação do caráter do praticante. É da piedade filial que se origina a honra da família e do Estado, sendo uma obrigação a cumprir, observar esta honra. A piedade filial representa o princípio da moral social já estabelecida, antes mesmo do nascimento e, portanto, da experiência individual.
No equilíbrio entre os opostos, físico e mental, se baseia a necessidade da permanente preparação do homem, a fim de que ele possa fazer realizações importantes na vida. Essa permanente preparação do homem, tem como função não somente a obtenção de realizações produtivas, mas também a prevenção frente as dificuldades, sejam elas físicas ou psíquicas. Considera-se que ser tomado de surpresa por perturbações – sejam elas em grande escala ou em pequena escala, uma guerra ou um sentimento de angústia, por exemplo – com as quais não se saiba lidar, é uma decorrência do despreparo, da falta de prevenção. Essa decorrência impõe o treinamento, como forma de se atingir o equilíbrio.
A grande ênfase na prudência e na humildade como características morais do carateca, é recorrente em sua obra. Percebe-se que Funakoshi se preocupa com a procura do caratê por parte de pessoas que intentem fazer uso das técnicas em luta. Alguns séculos antes, em que as guerras eram comuns, contexto no qual se desenvolveu o bushidô, estar sempre preparado, sempre pronto para a batalha era considerado como uma grande virtude. O bushidô, mesmo no início do século XX, continuava a ser o ditame moral que orientava o caráter japonês. Na II Grande Guerra, por exemplo, foi sob influência desse código que se estabeleceu a ideologia dos pilotos suicidas, os kamikazes. Todavia, no contexto de ensino no qual se inseria Funakoshi, cuja finalidade moral era a paz e a harmonia, seus escritos indicam que a manutenção dessa virtude não deveria tomar o “preparo para” como “predisposição para” a luta ou violência. E para lidar com os jovens que chegavam ao seu dojo entusiasmados pelas virtudes samurais e por uma predisposição à violência, o ensino de uma moral baseada em humildade e prudência parecia-lhe mais que fundamental. Funakoshi tinha consciência da mudança dos tempos e da necessidade de adaptação das novas gerações. Humildade e prudência, como se viu, eram valores presentes na cultura que influenciou a classe samurai, mas em alguns períodos históricos eram eclipsados pela égide bélica. Na sociedade civilizada porém, em que a guerra não era mais a regra, a ênfase em valores mais tolerantes parecia à Funakoshi uma necessidade urgente. Talvez esse novo contexto tenha colaborado para uma possível compreensão por parte de Funakoshi de que estes deveriam ser valores mais universais no que se refere à sociedade e às suas classes. Portanto a flexibilidade ou maleabilidade, que geraria maior tolerância, seria conveniente ao novo contexto. Não se pode perder de vista que, de acordo com o caminho do meio, essas características não poderiam ser confundidas com passividade ou complacência frente as dificuldades ou injustiças. O próprio treinamento exige ímpeto, ímpeto com humildade, um equilíbrio tido como longo e difícil de ser atingido.

Referências Bibliográficas
Aoki, E. (1994). Japan: Profile of a Nation. Tokyo: Kodansha International.
Doeblin, A. (1940). O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Ed. Livraria Martins.
Funakoshi, G. (1973). Karate-Dô Kyôhan. The Master Text (T. Oshima, Trans.). Kodansha: International.
Funakoshi, G. (1994). Karate-Dô: O meu Modo de Vida. São Paulo: Ed. Brasileira / Ed. Cultrix. (Original publicado em 1975).
Funakoshi, G. (1998). Karate-Do Nyumon: Texto Introdutório do Mestre. São Paulo: Ed. Brasileira / Ed. Cultrix. (Original publicado em 1988).
Herrigel, E. (1995). A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. (J. C. Ismael, Trad.). São Paulo: Ed. Brasileira / Ed. Pensamento. (Original publicado em 1975).
Massimi, M. (1998). A História das Idéias Psicológicas: uma viagem no tempo rumo aos novos mundos. Em G. Romanelli e Z. M. Biasoli-Alves (Orgs.). Diálogos metodológicos sobre prática de pesquisa. Ribeirão Preto: Legis Summa.
Musashi, M. (1996). O Livro de cinco anéis. (F. Barcellos Ximenes, Trad.). Ed. Brasileira Ediouro S.A. (Original publicado em 1984)
Sasaki, Y. (1995). Karate-Dô. São Paulo: CEPEUSP.
Suzuki, D.T. (1992). Introdução ao Zen-Budismo. (M. N. Azevedo, Trad.). São Paulo: Ed. Brasileira / Ed. Pensamento. (Original publicado em 1969)
Tzu, S. (1997). A arte da guerra. (J. Sanz, Trad.). Rio de Janeiro: Ed. Brasileira / Ed.
Record. (Original publicado em 1983).
Yamashiro, J. (1982). História dos Samurais. São Paulo: Ed. Hamburg.
Yamashiro, J. (1997). Japão Passado e Presente. São Paulo: Ed. Aliança Cultural Brasil-Japão.
Notas
(1) “A definição do que é psicológico, nesse caso, deve permanecer necessariamente indeterminada e vaga, quase como denominação convencional e provisória a ser   substituída no decorrer da pesquisa pela terminologia e demarcação de campo próprias
aos específicos universos sócio-culturais estudados” (Massimi, 1998, p.12).
 (2) “A mudança é a ordem do céu e da terra; a espada e a caneta são tão inseparáveis quanto as duas rodas de uma carruagem. Assim, um homem deve abraçar os dois campos se quer ser considerado um homem de realizações. Se ele for demasiadamente complacente, acreditando que o tempo bom durará para sempre, um dia será pego desprevenido por terríveis tempestades e enchentes. Assim é importantíssimo que nos preparemos, a cada dia, para qualquer emergência inesperada” (Funakoshi, 1994, pp. 88 e 89).
(3) “Primeiramente, como o karate é uma arte marcial, você terá de praticá-lo com a  maior seriedade desde o princípio. Isto significa fazer mais do que apenas ser aplicado e sincero no treinamento. Em cada passo, em cada movimento da mão, você deve imaginar-se enfrentando um adversário que empunha uma espada.Cada golpe deve ser dado com a força de todo o corpo, com a sensação de destruir o seu oponente com um único soco. Você precisa acreditar que, se a sua investida falhar, você pagará com a própria vida. Pensando nisso, sua mente e energia se concentrarão, e seu espírito se
expressará com toda a plenitude.” (Funakoshi, 1998, p. 47)
(4) O ditado transcrito, advêm de um conhecimento chinês clássico, escrito originalmente da seguinte maneira: “se você se conhece e ao inimigo, não precisa temer o resultado de uma centena de combates.” (Tzu citado por Clavell, 1997, p. 9).
(5) Funakoshi conta sobre um conselho de seu mestre, Azato: “se o adversário não se assustar, se permanecer calmo e se procurar a brecha inevitável na defesa (...), a  vitória não é tão difícil” (Funakoshi, 1994, p. 29).
(6) “O que aprendi pela observação desse esporte é que o time que apenas está decidido a vencer em geral fracassa, ao passo que o time que entra na competição para divertir-se, sem se preocupar muito em vencer ou perder, em geral, sai vitorioso. A observação é verdadeira tanto para uma luta de karate como para um confronto de cabo-de-guerra” (Funakoshi, 1994, p. 77).
(7) “Para o ambicioso, que só se importa com os tiros certeiros, o alvo não é nada  mais do que um simples pedaço de papel que ele destrói com suas flechas. Para a Doutrina Magna dos arqueiros, esse procedimento é, no mínimo, diabólico. Ela ignora o alvo erguido a uma determinada distância do arqueiro. A única meta que persegue é aquela que de nenhuma maneira se pode alcançar tecnicamente, e essa meta se chama – se é que se pode dar algum nome Buda” (Herrigel, 1995, pp. 67 e 68).
(8) “O objetivo do Karate-do é a perfeição da mente e do corpo, e por isso expressões que exaltem somente a perícia física nunca deveriam ser usadas em ligação com ele. Como um santo budista, Nichiren disse tão apropriadamente, quem estuda os sutras deve lê-los não somente com os olhos que estão em sua cabeça mas também com os olhos da alma. Essa é uma admoestação perfeita que o treinando de Karate-do sempre deve lembrar.” (Funakoshi, 1994, pp. 117 e 118). “A fonte dessas preocupações (ndr: “uso indiscriminado do karate”) está numa concepção errônea do karate, surgida a partir de instrutores de mau caráter, os quais irrefletidamente, colocaram maior ênfase na técnica do que nos aspectos espirituais do . Dessa conduta resulta a pobreza espiritual daqueles que aprendem karate “apenas como técnica de luta”. Existem até casos extremos em que os instrutores incentivam os alunos a utilizar o karate em suas brigas. São prejudiciais advertências do tipo: “Você não pode progredir, nem aperfeiçoar sua técnica, se não fizer uso dela em lutas”, ou “se você não consegue lutar com fulano, é melhor desistir de aprender karate”. Essas advertências apenas demonstram falta de bom senso por parte daqueles que não sabem nada a respeito do que é o karate-do” (Funakoshi citado por Sasaki, 1995, p. 89).
 (9) A valorização de uma atitude mental de intensa determinação poderia parecer, a priori, algo semelhante à afirmação do orgulho em oposição à humildade e, portanto, contradiria o ideal exposto acima. Porém, observemos as já citadas palavras de Funakoshi de que é preciso “acreditar que, se a sua investida falhar, você pagará com a própria vida” (Funakoshi, 1998, p. 47) para que possamos fazer o paralelo com o Zen: “Uma criança está se afogando. Eu mergulho e salvo a criança. Isto é tudo que tenho a fazer no caso. O que está feito, está feito. Ando para frente sem olhar para trás e sem pensar mais no caso. Uma nuvem passa. O céu é tão azul e amplo como sempre o foi” (Suzuki, 1992, p. 155). “O Zen não abriga qualquer traço de orgulho ou glorificação, mesmo após a prática de um bem.” (Suzuki, 1992, p. 156).

Notas sobre os autores
Marina Massimi é Professora Associada do Departamento de Psicologia e Educação,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Ribeirão Preto – Universidade de São
Paulo. Linha de Pesquisa: história das idéias psicológicas. Contato: mmarina@ffclrp.usp.br.
Cristiano Roque Antunes Barreira é Psicólogo, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. Praticante de caratê, é professor e atleta da Associação Tsuyoi Seishin com sede em Sertãozinho-SP. Contato: crisroba@usp.br. Data de recebimento: 20/12/2001 Data de aceite: 08/04/2002

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Conectando-se ao solo

Conectando-se *Below, the Portuguese text, the text in English.
Staying Connected  
por Toru Shimoji (1999)
by Toru Shimoji (1999)
  Wanderley da Silva[1]
  
Conectar seu corpo ao chão é um princípio fundamental aplicado a todas as posições durante Kamae e Kime.  
            Aumente a sensibilidade da  conexão do seu corpo ao chão " sentindo " seu fluxo de energia. O seguinte é só um método que você pode usar para criar esse tipo de conexão.  
            De uma postura neutra em pé, comece concentrando-se na sola frontal do seu pé. Progressivamente mova seus pensamentos para o dedão do pé então para o dedinho, a extremidade exterior do pé e finalmente o calcanhar. Até agora você deveria ter feito uma linha de energia em forma de “orelha” a partir da sola do pé. Continue o fluxo da linha de energia movendo-o para baixo, para dentro do chão, com um movimento circular e contínuo. Use sua mente para continuar este fluxo de energia.  
            Em essência, o fluxo da linha de energia mantém o equilíbrio, e mantém você conectado ao chão. A relação da linha de energia descendente e ascendente é dinâmica, constantemente se ajustando a várias tarefas como Kamae, movimento de corpo e Kime.  
            Generalizando-se, a relação do fluxo se apoiará mais em direção descendente para o Kime, e o ascendente para o movimento de corpo.  
            Eu freqüentemente falo sobre o uso da postura correta em pé, chamando isso de uma Postura de Referência, um Estado Equilibrado ou uma Elevação Cilíndrica Interna, em um esforço de aproximação ao alvo de vários ângulos.  
            O propósito dos exercícios de postura é lhe dar uma referência de sentimento para um alinhamento de corpo e respiração corretos de uma posição parada neutra. Nosso objetivo é traduzir este “sentimento” em suas técnicas de karatê e na sua vida diária.  
            Porém, todo esse palavreado não significa muito quando você não está treinando, ou treinando desatenciosamente. Isso apenas adiciona mais “lixo” ao depósito de informação trivial de sua mente.  
            Porém, se você está treinando, as palavras assumem um significado especial. Elas o golpeiam no ego mais profundo enquanto lhe dão um novo discernimento. O que você tem se esforçado por muito tempo para conseguir, pode ficar fácil de repente, ou você adquire certa compreensão ou claridade que você nunca teve antes, que começa a refletir em suas técnicas.  
            Então o seu treinamento se torna uma grande fonte de prazer. O que nós dedicamos tanto de nosso espírito deveria ser uma fonte de diversão de toda uma vida.  


[1] Artigo traduzido por Wanderley da Silva.



Staying Connected

by Toru Shimoji (1999)


Connecting your body to the ground is a fundamental principle applied to all stances during Kamae and Kime.
Increase your sensitivity of your body connection to the ground by "feeling" your energy flow. The following is just one method you can use to create this type of connection.
From a neutral standing posture, start by concentrating on the ball of your foot. Progressively move your thoughts to the big toe, then the small toe, the outer edge of the foot and finally the heel. By now you should have made an "ear shaped" energy line starting from the ball of the foot. Contin ue the flow of the energy line by moving it downwards into the floor in a corkscrew-like motion. Use your mind to continue this energy flow.

In essence, the flow of the energy line maintains balance, and keeps you connected to the ground. The ratio of the downward and upward energy line is dynamic, constantly adjusting adjusting to various tasks such as Kamae, body movement and Kime.
Generally speaking, the ratio of the flow will lean more towards the downward flow for Kime, and the upward for body movement.
I have often spoken about the use of correct standing posture, calling it a Reference Posture, a Balanced State or Inner Cylinder Lift, in an effort to approach the subject from various angles.
The purpose of posture exercises is to give you a reference "feel" for correct body alignment and breathing from a neutral standing position. Our aim is to translate this "feel" into your karate techniques and your daily life.

However, all this verbiage doesn't mean much when you are not training, or training thoughtlessly. If just adds more "garbage" in your mind's trivial information storage.
If you are training, however, words take on a special meaning. They strike you in the inner-self, giving you new insight. What you have been struggling with for a long time can suddenly become easy, or you get a certain realization or clarity you have never had before, which starts to reflect in yo ur techniques.
Then your training becomes a great source of pleasure. What we devote so much of our spirit to should be a life-long source of fun.